18/03/2009

Aurora

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Vagueava desesperado, tendo como companhia os uivos do vento. Negras nuvens encobrindo a lua, apenas a escuridão em meu caminho. Meus olhos, enegrecidos por lágrimas doloridas permaneciam fechados, se desmanchando num rio de lágrimas amargas. O coração, num laço apertado queimava meu peito e o frio era minha mortalha. Estava completamente só, sem amigos, sem amor, sem ninguém. Quando a desesperança atingiu seu ponto mais agudo, minhas asas foram parando de bater e me deixei cair ao lado de um rio escuro e choroso. O ruído das águas correndo em busca de um destino desconhecido foi preenchendo minha mente cansada e, finalmente, um pouco de paz abateu-se sobre mim. O triste canto das águas do rio foi tomando conta dos meus sentidos e, pouco a pouco, nos tornamos um. Eu e o rio. Seguindo, chorosos, em busca do desconhecido.

Um raio de luz criou um mágico reflexo no meio do rio. Meus olhos ainda rasos d’água procuraram aquele único brilho em meio à escuridão. Pouco a pouco, na água, o que antes era apenas um canto triste ganhava forma, mostrando tênues relevos, alterados constantemente pelo risco de luz. Era a Lua, numa guerra surda vencendo a barreira de nuvens escuras e enviando um sinal amigo, de conforto. Apeguei-me àquele sinal e meu coração foi-se apaziguando, minhas lágrimas secando. Aos poucos as inamistosas nuvens negras foram abrindo espaço para o brilho da luz, até que esta, triunfante, mostrasse todo seu esplendor. O rio já não era tão tristonho, suas águas pareciam inebriadas pelo luar, mudando o tom lamentoso do seu canto para um som mais ameno, sereno. Uma a uma, as damas de companhia da Lua marcavam presença, pontos luminosos, transformando a paisagem e acalmando o meu coração.

Levantei-me e inspirei. Fundo. Soltei, num som de lamento, todo o tormento que habitava meu corpo, todo o sofrimento que apertava meu coração. E me pus a caminho.

Seguia o curso do rio, a trilha de luz sobre as águas, o canto ameno, o cheiro de mato. Já não mais ventava. Minhas asas foram se alongando, retomando suas cores e se abrindo sobre mim, elevando-me suavemente em busca do meu destino. A brisa se juntou ao rio fazendo música suave.

O coração doía ainda, mas a alma estava em paz. O corpo solitário se arrepiando levemente com a carícia da brisa da madrugada. E o som das asas batendo se juntou ao do rio e da brisa, harmonicamente, inconsciente.

O rio corria e cantava, acompanhado pela brisa e pelo som abafado das minhas asas. Meus olhos, agora secos perscrutavam o longínquo horizonte, iluminado pela Lua amiga e por suas damas de companhia. Mas, o que seria aquela luz ao longe?

Não era reflexo da Lua, nem tinha a cor das estrelas. Era mais amarelada, mais fixa. Enquanto me aproximava fui percebendo a silhueta de uma casa entre árvores. De uma janela aberta, ladeada por uma trepadeira em flor, que exalava suave perfume, saía aquela luz que me atraía, traindo a companhia da Lua. Com o olhar fixo para dentro daquela janela aberta vi alguém, ao lado de um abajur solitário que iluminava um vaso com copos de leite. Meio sentado, meio deitado naquela poltrona, um homem respirava a duras penas e dois olhos escuros procuravam, no vazio, por um raio de luz. Acerquei-me dele colocando uma mão sobre sua testa, enquanto a outra energizava seu coração.
Sua respiração foi se normalizando até que, num doce suspiro, seus olhos encontraram os meus. Seu olhar trazia tanta dor, tanto sofrimento que, esquecido dos meus, sorri docemente e convidei-o a me acompanhar.

Ele começou a se levantar devagar e enlacei-o em meus braços, num delicado abraço, levando-o comigo. Voamos juntos sob um céu festivo, com o séqüito da Lua seguindo-a enquanto, a leste, um clarão alaranjado anunciava a Aurora. Pousei na encosta de uma montanha, de onde se avistava o rio que me guiara e me despedi da amiga Lua, agradecendo sua companhia. Ela beijou levemente a testa do meu companheiro e com um sorriso doce afastou-se de nós. À chegada da Aurora, a paisagem prateada que me acompanhara foi se colorindo e, ao som do rio e da brisa foram se juntando novos e alegres sons matinais.

Comecei então a despir lentamente meu novo pupilo e seus olhos foram deixando que se esvaíssem toda a dor, a tristeza e o sofrimento que os tornava escuros. Foi adquirindo os tons da manhã, me olhando com carinho, me trazendo consolo. Já desnudado, apertei o seu corpo num abraço envolvente e fui retirando das suas costas os raios da luz da manhã que foram se transformando em asas coloridas. Como as minhas. E num beijo amoroso selamos nossa amizade e atamos nossas vidas que seguiriam unidas. Até quando? Não sei.


Nota: este conto foi publicado em 03/07/2004, escrito em homenagem ao Pedro Nascimento, um amigo português, que há muito sumiu da blogosfera... saudades, Pedro!

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