O calor forte e úmido embota os sentidos e, nem a TV ligada, com sua programação sem graça consegue me entreter.
Preguiçosamente, desligo a TV e, dirigindo-me lentamente à estante de CDs, escolho alguns com minhas músicas prediletas e os disponho na bandeja para tocar. Já encharcado de suor, retorno à minha poltrona predileta e me solto sobre ela, enquanto percebo, pela grande janela envidraçada da sala, que lá fora chove copiosamente. Aliás, chove como sempre, durante as festas de fim de ano.
E o ventilador, à toda, não consegue espantar o calor!
Reabro o livro que estava lendo e deixo meus olhos seguirem as linhas que se embaralham pelas páginas, pesadas de tantas palavras, formadas por milhares de letras. Ao fundo, a melodia sempre hipnotizante do Bolero de Ravel que segue, em seu crescendo, aparentemente sem fim.
É nesse momento que um barulho vindo da cozinha me desperta do meu torpor. Preocupado, por estar só em casa, levanto-me com dificuldade e, pé ante pé me dirijo à cozinha, carregando nas mãos, à guisa de arma, um guarda-chuva velho que jazia, encostado e inútil, num canto da sala.
Encontrei vasculhando a geladeira, um garoto gordinho de uns sete anos, que me olhou assustado, como se o invasor ali fosse eu. Aproximei-me com cuidado, sem largar a arma, digo o guarda-chuva velho e perguntei o que ele estava procurando em minha geladeira. Agora sim, assustado de verdade, ele disse que a geladeira era dele e que eu é que deveria explicar o que fazia dentro da sua casa. Sem receio do garoto, resolvi entrar na brincadeira para entender o que ele queria em minha casa e como havia entrado sem que eu percebesse.
Disse que estava com sede e gostaria de tomar um copo de água gelada. Ele, com desenvoltura, tirou um copo do armário, ofereceu-o para mim e, abrindo novamente a geladeira, pegou a garrafa de água que destampou e foi inclinando sobre o copo que eu segurava, até enchê-lo parcialmente de água. Depois ficou olhando-me fixamente, ainda segurando a garrafa, até que eu bebesse todo o líquido refrescante. Como eu agradecesse e dissesse que estava satisfeito, ele fechou a garrafa com cuidado e guardou-a novamente na geladeira.
Parecendo um pouco mais seguro, sentou-se num banquinho e pediu-me que lhe explicasse o que fazia em sua casa na noite de Natal. Ele disse que sabia que Papai Noel eu não era, pois o bom velhinho não existia. Resolvi, então, tentar destrinchar aquele mistério, dizendo-lhe que, na verdade eu estava na minha casa e que ele é que havia entrado sorrateiramente ali, sem ser convidado. Fomos discutindo acaloradamente quem estava na casa de quem, até que, assustado, comecei a desconfiar de que estava discutindo comigo mesmo, ou melhor, com o garotinho gorducho que eu havia sido há tantos Natais passados.
Minha vida toda retrocedeu rapidamente, como num filme ao contrário e eu percebi que, naquela idade, cinqüenta e cinco anos antes, eu estava desolado por haver descoberto que Papai Noel não existia. E que os presentes que ganhava todos os Natais eram comprados pelos meus pais e não deixados magicamente embaixo da grande árvore de natal que enfeitava um canto da sala de estar. E desde então, a esperada festa de Natal havia perdido a magia e o mistério! Pouco a pouco, à medida que minha idade ia aumentando, fui percebendo as desigualdades, o sofrimento, as perdas, tudo enfim, que contribui para tirar dos adultos aquela sensação de que, num passe de mágica, o mundo será melhor.
Escola com professores desinteressados, colegas impiedosos que não hesitavam em tiranizar a vida dos menos agressivos, namoradas volúveis, trabalho excessivo com chefes que não se importavam com as necessidades pessoais dos seus subordinados, exigindo horas extras intermináveis; a cada acréscimo de dificuldades, um pouco mais de magia e sensibilidade nos deixava.
O vigor e a insensibilidade da juventude empurrando para as noitadas de farra, depois as obrigações de um casamento obrigado por uma gravidez indesejada, aliadas à decepção da morte prematura do filho indesejado, com o progressivo afastamento dos cônjuges até que cada um resolvesse tomar o seu próprio caminho, tudo isso empurrou para trás de uma parede de esquecimento as noites de fé e de esperança de um garotinho gordinho que, até os sete anos ainda acreditava em Papai Noel.
E ali, há cinqüenta e cinco anos, começava a tomar forma o homem que, nesta noite chuvosa e quente, estava na cozinha da sua casa, conversando consigo mesmo, com sete anos de idade e ainda com um grande estoque de fé, esperança, afetuosidade, compaixão e tudo o que fora deixando pelo longo caminho de sua vida.
Senti um enorme aperto no peito, lágrimas desaparecidas há tanto tempo, surgiram como por encanto e umedeceram meus olhos que olhavam fixamente para aquele garotinho gordinho que, de repente, abriu os braços e aconchegou meu corpo cansado em seu peito infantil. Uma onda de amor percorreu meu corpo enquanto as lágrimas lavavam minha alma dolorida. Deixei-me confortar pelo pequeno e, não sei mais desde quando, resolvi deixar as lágrimas se transformarem em soluços que aos saltos, foram retirando do meu coração toda a amargura acumulada, preparando-o para receber novamente todos os bons sentimentos que um dia habitaram meu coração infantil.
Foi então que percebi que os últimos movimentos do Bolero preparavam o término triunfal da composição de Ravel e que o pequeno gordinho que me abraçava diminuía sensivelmente até caber em minhas mãos, com os bracinhos abertos e um sorriso triunfal em seu rostinho corado. Levei-o com carinho para a sala e, sobre uma mesinha, preparei-lhe uma caminha com um pouco de palha tirada de uma caixa de vinho. Lá fora a chuva parou e, pela grande janela envidraçada da sala, vejo, no céu, uma estrela brilhante.
Volto à minha poltrona predileta e sento-me, com o coração leve e uma oração nos lábios. Adormeço.
Abro os olhos preguiçosamente, um fio de suor escorre pelo meu peito; abro os braços e me espreguiço, bocejando com vontade. Percebo que dormi na poltrona. Lá fora, um dia ensolarado faz com que as gotas de chuva pendentes das plantas brilhem como pequenas estrelas. Ou pequenos diamantes. Na mesinha ao lado, percebo surpreso, uma pequena imagem do Menino Jesus que me observa sorrindo e com os bracinhos abertos. Como se me desejasse Feliz Natal!
Ajoelho-me e, como não fazia há mais de cinqüenta anos, oro com fervor. E enquanto lágrimas de amor e gratidão escorrem-me dos olhos, agradeço àquele menino por tudo o que fez por mim. E por todos.
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Notas:
Agradeço aos amigos que ainda passam por aqui.
E àqueles que não passam mais também.
Este conto é dedicado a todos.
Ao ANDRÉ:
você continua sendo um amigo muito querido.
Só preciso que passe o seu e-mail correto para poder fazer contato.
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