02/03/2009

Virando páginas

.
.


Um rosto inexpressivo, envelhecido, com olhos cansados e parados, respiração suspensa, sob cabelos desalinhados se refletia naquele espelho coberto de marcas do tempo. Corpo enterrado sob o edredom, deixando à vista apenas a cabeça coberta de cabelos mal tingidos. Penosamente o corpo vai se virando e os olhos cansados param no travesseiro vazio ao lado, mostrando uma solidão tão grande, que dificilmente se conseguiria preencher. Lentamente ela tira as mechas de cabelo da testa e começa a levantar-se. Seus pés procuram os chinelos, velhos como ela, e se enfiam neles, sentindo um pouco de conforto. Puxa dos pés da cama, o penhoar desbotado e o coloca com dificuldade, amarrando a faixa numa cintura que já não existe. Abre gavetas e coloca numa maleta antiquada algumas peças de roupa, escolhidas aleatoriamente. Precisa sair dali. Daquela casa onde viveu os últimos trinta e oito anos, que viu crescerem os seus filhos, de onde eles saíram para criarem novas famílias. Toma um banho rápido e, sem grandes cuidados com a aparência, pega a maleta, fecha a casa e sai. Na cidade, se perde procurando a rua onde mora seu filho, sua nora e netos. Sempre havia ido de carro, com o marido e nunca precisara prestar atenção ao endereço. Finalmente encontra a casa e toca a campainha. Após intermináveis minutos, aparece a nora com os cabelos molhados e uma toalha enrolada no corpo. Surpresa, convida a sogra para entrar e pede desculpas, pois precisa deixar as crianças na escola e correr para o escritório. As crianças gritam nos fundos da casa e, quando aparecem, custam a reconhecer a avó. Depois de alguns minutos, ela está sozinha na casa do filho. Na hora do almoço o filho passa ràpidamente para lhe dar um abraço, mas logo se vai, pois está trabalhando e não pode ausentar-se por muito tempo. Ela resolve ir procurar a casa da filha solteira, que mora num pequeno apartamento com seu próprio filho, feito como "produção independente". A filha também está apressada e agradece por ela ter aparecido, pois poderá ficar com o neto para que possa sair à noite sem preocupações com horários ou cuidados com o garoto. E ela fica novamente sozinha na casa da filha, com um neto que não a reconhece. Mas acabam se entendendo. Cuidados e carinhos de avó abrem corações de netos. À noite, o menino, assustado com a ausência da mãe, se enfia na cama da avó e dormem abraçados. E assim vão se passando os dias, entre as casas dos dois filhos, sempre ocupados, correndo atrás de suas próprias vidas e sem tempo para a mãe que, em contrapartida, cuida ora de um neto, ora da roupa da neta, ora do lanche dos garotos. E assim vão se passando os dias. Até que uma noite, não conseguindo dormir, vai até a cozinha buscar um copo de água e ouve uma discussão entre o filho e a nora, que exige do marido que despache logo "aquela mulher" de quem ela nunca havia gostado. E ele, entre a cruz e a espada, implora à esposa que seja paciente, pois seu pai acaba de falecer e é normal que a mãe esteja um pouco perdida, um pouco carente. Sua mulher corta os argumentos com a seguinte frase: “a vida dela já se passou! Ela já fez tudo o que tinha que fazer. Que fique agora em sua casa curtindo seu luto e nos deixe cuidarmos das nossas vidas que estão apenas começando". Chocada, aguarda o amanhecer e vai até a casa da filha que a recebe com a notícia de que conseguiu uma transferência para outra cidade e até um ótimo colégio semi-interno para o filho. Só lhe resta recolocar seus poucos pertences de volta na maleta antiquada e voltar para sua velha casa, onde viveu metade de sua vida. Mas ela não se sente acabada! Não se sente no fim! Se sente viva, capaz, cheia de desejos de fazer coisas que nunca havia podido fazer antes. Ela não tem o espírito perdedor daquelas que vestem luto e sentam ao lado da janela aguardando a vida passar. Tira um extrato no banco, faz as contas de sua aposentadoria mais a do marido e percebe que pode viver muitas coisas com aquilo. Abre gavetas e armários, seleciona cuidadosamente novas roupas, arruma-as cuidadosamente na mesma maleta antiquada e sai novamente de casa. Vai até uma agência de viagens e fecha um pacote. Instala-se num pequeno hotel até o dia da partida e sem avisar a ninguém, embarca para uma viagem que deverá durar quase dois meses.
E ninguém deu pela falta dela!

.
.